Tendo como deixa a passagem desses meliantes de Osasco por Mogi das Cruzes quando do Festival Lumière do dia 10/04/10, como também o recente relançamento em cd da sua discografia, embarco aqui numa jornada sem volta à essência do underground urbano, um mergulho nas profundezas da alma apodrecida e suspensa pelas verdades do mundo, em suma, a maior das pretensões, ao falar sobre a discografia de uma das maiores bandas do underground paulistano, o La Carne.
(1997) La Carne
Estamos entre 1997 e 1998, uma apatia generalizada toma conta do cenário musical brasileiro onde musas de tchans e gostosas do axé sem o mínimo de inteligência necessária para uma subsistência cultural sadia vendem para uma multidão hipnotizada e imbecializada suas bundas gordas de estrias e celulites semi-photoshopadas, ao mesmo tempo em que gladeam nas paradas de sucesso com duplas sertanejas de chapeis capciosos, falsetes suspeitos e vibratos de plástico que mais parecem terem sido alvo do aprendizado de um Pato Donald (muito mal) influenciado por um já tardio Axl Rose enrugado e de bolas murchas. E olha que nesta época já existia internet (apesar da conexão ainda ser dial-up!), além do Napster já dar seus primeiros passos.
É neste cenário horrorshow que a banda mais guerreira, influente e sangue bom pra caralho que temos conhecimento do underground paulistano, o La Carne – banda de Osasco formada por Marcos Linari (voz), Jorge Jordão (guitarra), Carlos Remontti (baixo) e Chicão Reinikova (bateria – que substituiu Fábio Escanhuela, batera original que gravou os 3 primeiros discos), lança seu primeiro petardo auto-batizado com 12 jóias raras do cancioneiro rock independente brasileiro.
O disco abre com dois clássicos lacarneanos: Viaduto do Sol e Demônio Triste, que são odes ao comportamento cosmopolitano encontrado em uma megalópole alucinática como Sampa, já mostrando qual será o nível da conversa daqui em diante. Seguindo na mesma vibe, temos Sobre a Revolução, um som cheio de climas e super bem temperado com o suingue da guitarra de Jorge Jordão e De Uma Lembrança Estranha que valoriza o comportamento nada habitual daquilo que podemos chamar de uma “pessoa comum”.
Marimbondo fez parte em 2008 da trilha sonora do filme de Reinaldo Pinheiro "Nossa Vida Não Cabe Num Opala" (Baseada na peça teatral de Mário Bortolotto “Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet”) e prova que o som do La Carne é sim atemporal, não apenas pela estrutura musical como também pelo conteúdo urbano e facilmente identificável em suas letras (“O tempo vai comendo a paciência e nós aqui, atravessando sinal, enchendo a boca de migalhas sempre que vamos tocar”). Na seqüência Quem Aqui (Desgraça), repleta de guitarras ousadas e baixão coeso e Como É Então revisitam o comportamento diverso de uma megalópole como roubos, extorsão, drogas, algo aliás corriqueiro na poesia urbana proposta pela banda. O mesmo ocorre em Jukebox que mostra com ironia como seria uma balada do La Carne, com a inclusão de elementos díspares (ou não) como o taco de bilhar, o pai, a ficha da jukebox e os “homi”.
Um Brinde a Iggy Pop! faz referência muito bem humorada à “iguana” e é o primeiro momento onde encontramos microfonias e dissonâncias desconexas (muito bem feitas, aliás) na obra desses malucos de Osasco. Em Riso de Ninguém a banda brinca com o inglês na ponte do refrão neste que é um dos sons mais suingados deste disco, que fecha na mesma vibe com as aceleradas Sim, é Um Mundo Sujo... e Por Onde Anda Você que selam orgulhosamente esta obra que já deixa o link no ar do que estes meliantes vieram pra mostrar. Rock cru, honesto, verdadeiro e urbano dentro de uma coerência de quem consegue enxergar a real essência deste nosso Brasil varonil.
(2002) Bom Dia, Barbárie!
Cinco anos após a gravação do seu primeiro disco e com uma evolução notável no que rolava no mundo até então (o novo rock do início do século não iria definitivamente salvar o mundo, mas já havia tirado do estado de inanição aqueles pobres coitados sedentos por música nova de qualidade que putrefaziam-se ao gosto do pop descartável emitiviniano), com a internet já rolando em banda larga e o Napster sendo processado pelos gigantes da música (fail!), eis que nossos heróis nos presenteiam com seu segundo petardo nomeado Bom Dia, Barbárie!, que de cara já mostra uma nítida evolução nas pegadas da batera, com quebradas improváveis e a imposição de uma nova força, consideravelmente maior, em suas batidas. No geral o disco vem bem mais acelerado que o anterior e continua cheio de referências urbanísticas lacarneanas.
O primeiro destaque do cd é, de cara, a arte do encarte em papel vegetal transada pela Vânia Ferreira (responsável em grande parte pelas artes da discografia lacarneana) que teve extremo bom gosto em juntar pedaços separados de uma idéia e transformá-la no contexto final da proposta como um mosaico, um puzzle, pensando na transparência do vegetal e suas funcionalidades. Diria, genial!
Validando a linha de raciocínio do estado de inanição descrito ali em cima, Tava Aqui Pensando, mais um clássico lacarneano, abre o cd vomitando esta sensação na cabeça do ouvinte logo nas primeiras frases (“E ainda tô na rua prestando atenção, a multidão tão burra e a chuva devagar... e eu tava aqui pensando quanto tempo é que falta, pra que o dia amanheça e livre a nossa cara”) e arrebata no cinismo aos menos avisados (“Agradeço a preocupação, boa sorte pra você”). Bom Dia Barbárie!, a faixa que dá nome ao disco e outra candidata a clássica, pinta naturalmente com um ótimo trabalho de cozinha em junção com uma guitarra compassada e pungente fazendo a cama para Linari declamar que a vida talvez deva valer quase um Chevrolet, mas no final das contas o teu disfarce cai (e trai).
Apesar de ser uma evolução natural, incrível notar a aceleração na guitarra e a técnica peculiar utilizada por Jorge Jordão (pra quem não se tocou ainda, o rapaz não usa nenhum tipo de pedal de efeitos, apenas sua telecaster ligada ao ampli, e só jovem!) e Hoje Vai Ser é um exemplo prático onde se saca que não estamos falando de fritação e sim aceleração. Faz toda a diferença. This Is Not Real, Son (outro clássico lacarneano ideal para ser ouvida em seu ipod enquanto se desce a pé pela Rua Tomás Carvalhal) usa e abusa desta característica que já é considerada marca registrada destes meliantes.
A Sujeira e a Cegueira por sua vez, com um complexo suingado que a caracteriza do restante do álbum, purifica nossos ouvidos em breves 3 minutos da tal velocidade acelerada que havíamos comentado ali atrás, deixando uma brecha de respiro para ...E Isso É Só O Começo..., enquanto o ouvinte é levado para dentro da máquina de robotizar, localizada na fábrica de paranóia. Mas o endereço desta vez é secreto. E já que chegamos ao fim, é hora de darmos Brasa Nos Pé e resolver o que ainda parecia não ter sido resolvido até então. Mentira! Tá tudo resolvido, meu brother! La Carne é phoda que eu sei!
(2003) Desconhece O Rumo, Mas Se Vai
Prestes a completar 10 anos de banda (a formação inicial do La Carne deu-se no longínquo e fatídico 1994) e pouco menos de 2 anos após o lançamento do ótimo Bom Dia Barbárie! eis que nossos heróis lançam seu terceiro petardo que parece ter-se aproximado da perfeição. Numa época em que o hype exacerbado de um tipo de paga pau de gringo (principalmente na imprensa indie brazuca) onde a clipagem da NME (rá... rá... rá...) ou o último peido soltado no ermo sudoeste do leste europeu acabou acarretando algumas dezenas de “one-hit wonders”, os lacas não se rebaixaram a estes “tipos” que assolavam a mídia e resolveram por si próprios a mostrarem presses “Zérruelas” o que é o verdadeiro rock’n’roll. Sem hypes, sem pretensões, sem querer se levar a sério. Fazendo pra fazer bem feito, com tesão.
Desconhece o Rumo Mas Se Vai é o som que abre e dá título ao cd. Outro grande candidato a clássico lacarneano, além de nos proporcionar prazerosos longos 7 minutos da mais pura poesia e energia lacarneana, tem como destaque a incrível linha melódica e precisão das 4 cordas empunhadas por Carlos Remontti que se responsabiliza em segurar por todo o tempo a obra sem deixar em momento algum a peteca cair. Estamos ouvindo o cd, mas é incrível notar a calma e naturalidade desta banda tocar ao vivo linhas complexas. Creio ”maturidade” ser a resposta. É Baderna chega chegando, chutando a porta e o que mais tiver pela frente. Faixa integrante do filme Pixo de 2009 dirigido por João Wainer e Roberto T. Oliveira, ironiza a ação de força de corporações submissas a um governo tardio e retrógado contra manifestações populares, fato bem comum em países em desenvolvimento tal qual o nosso. Isso tudo sem citar a força da própria música que inova trazendo trechos vocais gravados ao contrário, criando uma imagem como se fosse o próprio cramulhão que estivesse dando o seu aval pra bagunça generalizar-se. Sábias palavras do sábio Linari: “Prendam todos e enforquem os poetas”.
Figurinha Difícil traz um personagem que todos já conhecemos um dia: aquele ser mala, pentelho, fofoqueiro, que precisa desesperadamente aparecer e se afirmar na ânsia de ser alguém. “Sai Zica!”, diria o poeta. Já Que Eu Tô Aqui descreve uma situação de crise ou mesmo final de relacionamento e se destaca pela técnica de Jorge Jordão, que fica o som todo brincando com o interruptor de timbres da sua teleca, o que dá uma sensação cabulosa de um delayzão diferente (lembrem-se: o rapaz nunca usa pedais de efeito!).
O cd fecha com 3 sons bem diferentões: Faroestes esbanja um grande texto, mas não faz questão nenhuma de refrões, a ótima Café Amargo que é o que poderíamos chamar de uma “balada” lacarneana, muito mais pela pegada “de boa” imposta pelo som e não por ser uma balada em si, uma vez que seu refrão permite o punch que a descaracterize como tal, e fechando, Canção do Mar Revolto, proposta a sugestionar uma volta para casa após uma conturbada viagem, dias fora, repensamento de alguns conceitos (seja o que isso quiser dizer) e a reação esperada após toda a tempestade, a fúria do mar, o vendaval – metaforicamente falando, lógico. Arrisco dizer que este é o cd mais progressivo dos Lacas, mas não aquele progressivo com ondas de Rush, Yes, King Crimson, Jethro Tull, nada a ver. Progressivo aqui quando nos referimos à própria sonoridade criada pelos caras. Tipo, quase uma experimentação ao explorar os próprios limites, saca? Ou seja, recomendadíssimo.
Estamos falando de praticamente 15 anos de muita história pra contar, segundo os próprios: “muitas risadas, algumas lágrimas, amigos feitos, roubadas, escândalos, noitadas, enferrujados spots de luzes coloridas, orgulho em fabricar artesanalmente nossa própria obra sem pressões ou concessões, orgulho em tomar as rédeas da nossa própria história, orgulho em ter fãs tão fabulosos, anônimos como nós”. Sim gurizada, os fios brancos trazem sabedoria, serenidade e plenitude. Aí você pega tudo que absorveu em 15 anos de estrada e comete uma obra-prima, um “masterpiece”, um “chef-d’ouevre” como dizem lá, e lhe designa muito propiciamente a alcunha de Granada, primeiro disco da banda a incorporar outros instrumentos fora a santíssima trindade baixo-guitarra-bateria (há teclados, violino, percussão e sanfona), são 12 faixas que soam como carne crua e sangrenta jogada num ventilador industrial em velocidade cinco, ou seja, clássico total!
Não há muito o que se dizer sobre uma obra-prima, palavras em demasia aqui denotarão uma pretensão que já foi longe demais só em arriscar-se a resenhar a discografia por si só. O que dizer sobre uma obra repleta de clássicos absolutos que começa de cara com a singela frase “Contracorrente desde sempre baby, contra os abutres que devoram devagar”, ou da linha de baixo “cavulosa” de Carlos Remontti na faixa-título Granada enquanto Linari, ao ver um anjo e um demônio, questiona: “qual de vocês veio me levar?”, ou da imagem tarantinesca provocada por Malasuerte em sua lenda ibérica rechaçada de loucas vozes dissertativas ao fundo, ou da guita sinistra que Jorge Jordão comete na fantástica Blues dos Seus Absurdos em conjunto com a batera socada de Chicão que lembra mais um trator desgovernado certo e convicto de seu rumo, ou da brisa que Decida provoca enquanto o mundo lá fora, sujo e cruel, me leva a te buscar. “Ponha seu melhor vestido baby, bora fazer um Sambakaos completamente insano e atonal!”, diria o poeta.
O que falar sobre a irônica Tratadus Pilantrae (T.G.P.) que se tornou a melhor imagem da política contemporânea brasileira e seus meandros “nhém-nhém nhém-nhém nhém-nhém nhém”, ou sobre a espetacular Vergonha na Cara que se tornou hit instantâneo (La Carne com hit?) desde quando os caras a tocaram inteira pela primeira vez ali no ensaio deles em Osasco, ou sobre a onda que tiram com a atravessada-mãe-de-todas-as-outras em Ancestrais, ou sobre o recado que receberam de Jean Charles (R.I.P.) e Iggy Pop ambos afirmando categoricamente que Londres Está Uma Merda (é muito clássico prum disco só!) e efetivamente pessoas informadas sabem muito bem hoje em dia de tal verdade, ou sobre a treta (também brisada) descrita em Olhos Escuros sobre aquele casal mundano que, no fundo no fundo, a gente tá ligado que eles se amam pacas, apesar do carinha estar nitidamente de 4 pela mina nervosona, ou sobre a camaria final trazida pela reservada sanfona de El Sid – um breve farewell pra tua cabeça (tentar) assimilar a quantidade absurda de verdade e soco no estômago que acabou de ser despejado em você durante os últimos 48 minutos e 15 segundos de sua reles e vil existência.
Digo e repito: de obra-prima não devemos falar nada. Apenas calar, ouvir e aprender. Long live fuckers! Long live Laca!
E nós, meros anônimos, meros ouvintes, parcos ouvintes, temos a oportunidade de poder ouvir La Carne, e de tê-los por perto. Anônimos como a gente, estão ali, ao nosso lado, tomando aquela breja, trocando aquela ideia. Sempre na descontração. La Carne é a nossa oportunidade de dizer que tem coisa boa por aí, que, apesar de "Londres estar uma merda", vai ter som, vai ter aquela galera lá no bar, a gente vai se encontrar e dar risada. La Carne é a trilha sonora de nossas parcas vidas.
ResponderExcluirExcelente, despretensiosa e muito bem elaborada resenha. Assídua leitora.
ResponderExcluirSalve Mostarda!!!
ResponderExcluirMuito foda a tentativa de descrever o La Carne !!!
Como se fosse possivel falar desses brothers.
Esse texto já nasceu clássico!!!
Um abraço.
Fabinho - Guaxupé MG
Beerock
Excelente descrição dessa banda q eu amo muito!!!
ResponderExcluirvaleu pelos comentários Fabi, Fabinho e Rosa... e também aos que comentaram em direct live na minha fuça... e também aos que não comentaram...
ResponderExcluirbora pro rock gurizada!
=)
excelente mermo. os lacarnes merecem!
ResponderExcluirVoce esqueceu de citar que entre a presenca do Fabio e o Chicao houve o Sidney (all drumers). Que deixou a banda antes do Chicao entrar. Mas participou das gravacoes de "Granada". El Sid contem samples das gravacoes do Sidney. Daí até o nome "El Sid".
ResponderExcluirBill você está certíssimo!! Deixo aqui este mea-culpa ao graaande Sidney... é aquela história, vai se meter a falar de clássico e a informação que tem que ser dada acaba passando...
ResponderExcluirUm brinde fuckers!
Cara, você por acaso tem pra download os cds? Eu quero comprá-los faz um tempo e assim que possível o farei. mas enquanto isso, gostaria de me divertir com as mp3s. Só tenho o Granada completo.
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