Um lugar sem placas, com algumas indicações que fazem pobres motoristas caírem na contramão – São Caetano do Sul pode confundir as visitas, mas acho que ninguém se importou com isso no final da noite sábado. A pedida era o Festival Lumière, que aconteceria no Cidadão do Mundo.
E a movimentação começou cedo por lá. Oito horas da noite apareciam os primeiros gatos pingados – entre eles, eu – tomando drinks coloridos em copos de plástico. A rua parecia fazer parte de algum bairro residencial, sensação que destoava apenas com a pichação do muro indicando que “punks do ABC” estiveram por ali. Do outro lado da calçada, estrelas cintilantes nasciam de um possível curto circuito no poste.
Enquanto alguns bebiam e tentavam montar cubos mágicos do lado de fora, a Jane Dope começava a montar o palco para se apresentar. As linhas de guitarra/teclado/baixo, por vezes uníssonas aos vocais, e a variação no tempo das músicas – que remetiam a um grunge perdido no meio de batidas mais dançantes – foram aspectos presentes do início ao fim da apresentação.
Os detalhes mais interessantes ficaram por conta de uma das guitarras: um delay meio atmosférico deixava um som etéreo no ar, quase nostálgico. Lembrei-me de efeitos similares que o Bowie usava em alguns álbuns do final dos anos 70 / início dos 80, a visão de Christiane F. jogada na sarjeta e o barulho de sirenes percorrendo os cantos de uma Alemanha despedaçada por anos de guerras físicas e mentais.
A bateria, em questão de dinâmica, também se destacou, entre momentos de uma calmaria quase lullaby e outros de caixas e pratos "à volonté". Os vocais na Radiograve, que dividem em tom infantil, parecem mais ter vindo de algum filme trash dos anos 80 com crianças psicodélicas e bonecos assassinos (vide a capa do EP deles, talvez diga algo a respeito). Diria que a Jane carrega uma doçura pervertida em suas músicas, alternando momentos viajantes com partes mais simples e diretas.
Na sequencia, os efeitos, antes mais sutis na Jane, viriam com força no Seamus. Deixando de lado definições superficiais como “noise”, “guitar” e todas suas variações, a grandeza do show deles se deu na mescla de baixo e guitarra: enquanto os graves cantavam melodias intensas e bonitas, por um lado, a guitarra principal gritava, escandalosa, do outro. No meio disso tudo, a guitarra base dava apoio aos dois lados, junto à bateria.
É como se a mesma história fosse contada paralelamente, de formas diferentes, criando um contraste entre a angústia cheia de efeitos e a beleza melódica que lhe dava chão. Nessas horas penso que realmente esses dois conceitos – beleza e angústia - andam de mãos dadas.
Em determinado momento, o guitarrista larga as cordas e leva as mãos à cabeça. Na minha inocência de espectadora, achei que fosse algum tipo de performance esquizofrênica do tipo “onde estou”, mas era apenas a microfonia dando seus ataques corriqueiros aos que gostam de pedais de efeito. Nem tudo é tão romântico numa apresentação ao vivo...
Depois do abalo causado pela sonoridade um tanto sensível e áspera do Seamus, o Narcotic Love entrou com músicas mais dançantes, feitas de baixo, bateria e voz mais bases de guitarra e algumas baterias eletrônicas gravadas. Bom para manter o tempo, mas não consigo me empolgar com gravações executadas durante shows, falando especificamente de guitarras.
O mundo já é digital demais e eu sou mal humorada o suficiente para não aceitá-lo com minhas idéias retrógradas de anos 70 e toda aquela coisa de instrumentos espetados direto no amplificador, quase uma extensão das vísceras de quem os toca. Acho que nesse quesito se perde um certo torpor que existe quando uma pessoa empunha uma guitarra – e, cá pra nós, nunca se sabe realmente o que ela vai fazer com aquilo. Mas isso é só minha opinião. As pessoas bebiam e dançavam em frente ao palco, felizes da vida. Ponto pra eles.
Seguindo a noite, o Up Brothers entrou na sequencia com pop-rock cantado em português. No momento em que eles estavam no palco, eu me encontrava do lado de fora, numa conversa que não poderia deixar de ter (o mistério das noites de sábado embaixo de postes de luzes amarelas, existe algo melhor?).
Fui informada por minhas fontes exclusivas e bêbadas que a apresentação “destoou do som esquizóide das outras bandas (nada como adjetivos estranhos para resumir estilos musicais), porém honesto e muito bem executado. Uma palavra pra defini-los talvez seja ‘radiofônico’”. Achei coerente a definição, vou adotá-la.
Por último e para acabar com a expectativa gerada em torno de sua estreia nesse novo circuito (apenas nesse circuito, porque a banda já é de longa data) a Glassbox entra na sua caixa de vidro ambulante e executa sensações estranhas de dentro dela.
Detalhe admirável: são poucos power trios que realmente seguram a onda ao vivo, em qualquer estilo que seja. E quando se pensa nos arpejos incessantes das músicas deles, seguros apenas por um vocalista/guitarrista, isso é quase um milagre. O baterista sofreu até o fim - com ritmos baseados em viradas ininterruptas apoiadas nas peças graves, o tribal contrastava com o chorus e o flanger que não largavam as cordas da guitarra. Melodias percorriam o tempo ficando mais densas ou sutis com a voz aguda as empurrando para frente, num ritmo tenso e nada confortável – uma zona de reflexão incômoda e necessária. É, acho que eles chegaram onde queriam.
Com tantos estilos diferentes na mesma noite, que se casam de alguma forma estranha no emaranhado de sensações que transmitem, pode-se dizer que cada apresentação foi peculiar. E a conexão que se deu entre pessoas que passeiam por tantas vertentes do rock e, por vezes, têm concepções diversas sobre tantos assuntos, foi o ponto alto do evento. As ideias compartilhadas musicalmente e verbalmente devem reverberar muito além desse último final de semana.